Todos sempre brincavam que precisaríamos de laços coloridos para diferenciá-los.
Então fizemos isso—azul, verde-água, vermelho.
Três cópias perfeitas, até nos furinhos do sorriso.
Completavam as frases um do outro.
Tinham sua própria linguagem.
Compartilhavam tudo.
Era como criar uma só alma em três corpos.
Mas há algumas semanas, o Verde-Água—o Tomás—começou a acordar chorando.
Não era por causa de pesadelos.
Era por memórias.
Foi assim que ele chamou.
Dizia coisas como: “Lembra da casa antiga com a porta vermelha?” Nós nunca tivemos uma porta vermelha.
Ou: “Por que não vemos mais a Dona Amélia? Ela sempre me dava rebuçados.” Não conhecíamos ninguém chamado Amélia.
Na noite passada, ele olhou fixamente para mim e disse: “Sinto falta do carro antigo do pai. O verde com o pára-choque amassado.”
Fiquei paralisado.
Ele não estava falando do meu carro.
Eu tenho um Renault.
E nunca houve um carro verde na nossa família.
No começo, pensamos que era imaginação.
Os meninos tinham sete anos.
Contavam histórias absurdas o tempo todo—navios piratas, dinossauros no sótão, fadas debaixo do alpendre.
Mas isso era diferente.
Os olhos do Tomás ficavam vidrados quando falava, como se estivesse em outro lugar.
Ele não estava tentando impressionar ninguém.
Acreditava genuinamente no que dizia.
Minha esposa, Leonor, tentou acalmá-lo.
“Talvez tenha sido um sonho, querido. À vezes, os sonhos parecem reais.”
Tomás balançou a cabeça devagar.
“Não. Eu me lembro. A porta vermelha rangia quando abria. A mãe pedia para eu não bater.”
“Mãe” era eu.
Mas ele não olhava para mim quando dizia isso.
Era como se eu tivesse desaparecido, substituída por outra pessoa na mente dele.
Leonor e eu começamos a anotar tudo.
Pretendíamos conversar com o pediatra.
Talvez até um psicólogo infantil, se continuasse.
Então, o Tomás começou a desenhar.
Folhas e mais folhas de uma casa com porta vermelha.
Sempre os mesmos detalhes: uma chaminé com hera, um caminho de pedras, um pequeno jardim cheio de cravos.
Os irmãos, Lucas e Pedro, olhavam por cima do ombro e diziam: “Que casa legal,” mas não pareciam preocupados.
Tomás não estava assustado.
Apenas… triste.
Como se algo precioso tivesse sido tirado dele.
Num sábado de manhã, encontrei-o na garagem, revirando caixas.
Ele olhou para mim, as mãos empoeiradas.
“Ainda temos a minha luva de baseball?”
“Você não joga baseball, filho,” disse eu, com cuidado.
“Eu jogava,” ele respondeu.
“Antes de cair.”
Abaixei-me.
“Antes de o quê?”
“Antes de cair da escada. A que o pai disse para eu não subir.”
Ele tocou a parte de trás da cabeça.
“Doeu muito.”
Fiquei a olhar para ele.
Havia uma certeza calma na voz dele.
Não medo.
Não confusão.
Apenas lembrança.
Marcamos uma consulta com a Dra. Isabel, a pediatra.
Ela ouviu com atenção, anotou tudo e recomendou uma psicóloga infantil especializada em memórias precoces.
“Não estamos a sugerir que haja algo errado,” assegurou-nos.
“Mas se essas lembranças o incomodam—ou afetam a percepção da realidade—vale a pena investigar.”
Marcamos a sessão.
A psicóloga, Dra. Ana Martins, era calorosa e gentil.
Tomás gostou dela imediatamente.
Após duas sessões, ela disse-nos em particular: “Isto não é uma brincadeira imaginária comum. Ele descreve coisas com um nível de detalhe que sugere uma memória profundamente enraizada. Alguns chamam de recordação de vidas passadas, embora seja um tema controverso.”
Vidas passadas?
Quase dei uma risada.
Queria uma explicação médica.
Um desvio cerebral.
Imaginação fértil.
Não… reencarnação.
Mas a Dra. Martins não defendia nenhuma teoria.
Apenas acrescentou: “Seja qual for a origem, ele está a processar algo muito real para ele. Não o descarte.”
Naquela noite, pesquisei na internet.
“Crianças que se lembram de vidas passadas.”
Encontrei inúmeras histórias.
Um rapaz que lembrava de morrer num acidente de comboio.
Uma menina que falava sueco fluentemente, sem nunca ter ouvido a língua.
Pais como nós, divididos entre a lógica e algo mais estranho.
Um artigo mencionava uma investigadora chamada Dra. Sofia Ribeiro, que entrevistava crianças com experiências semelhantes.
Ela vivia a duas cidades de distância.
Enviei-lhe um email.
Ela respondeu no dia seguinte.
“Adoraria conversar com o seu filho.”
Marcamos uma videochamada.
Tomás ficou tímido no início, escondendo-se atrás de mim, mas a Dra. Ribeiro tinha um jeito tranquilo.
Fez perguntas simples.
“Lembra-se do seu nome da outra vez?”
Tomás assentiu.
“Miguel.”
“E o sobrenome?”
Ele franziu a testa.
“Algo como Serra. Ou Ferra. Não me lembro bem.”
“Onde vivia?”
“Num casa com porta vermelha. No Porto. Perto do rio.”
Nós morávamos em Lisboa.
Nenhum de nós tinha estado no Porto.
A Dra. Ribeiro perguntou se ele lembrava de mais alguma coisa—escola, amigos, o que lhe acontecera.
Ele hesitou, depois sussurrou: “Não devia ter subido na escada. Mas queria consertar a bandeira. Caí. A minha cabeça…”
Tocou o mesmo lugar novamente.
Depois, olhou para o lado, em silêncio.
A Dra. Ribeiro disse que iria investigar.
Tinha acesso a registros antigos e conhecia casos parecidos.
Três dias depois, ela ligou-me.
“Encontrei um Miguel Ferra. Viveu no Porto. Faleceu em 1987. Sete anos de idade. Caiu de uma escada no quintal. Fratura no crânio.”
Um arrepio percorreu-me a espinha.
Ela enviou-me o obituário.
Havia até uma foto desfocada.
O rapaz parecia assustadoramente com o Tomás.
Os mesmos olhos.
A mesma covinha no cabelo.
Não sabia como processar aquilo.
Não queria assustar o Tomás—nem os irmãos.
Contei à Leonor.
Passámos a noite toda acordados, a conversar.
Ela chorou.
Não de medo.
De algo mais difícil de nomear.
Tristeza, talvez.
Confusão.
Espanto.
Na manhã seguinte, Tomás entrou na cozinha e disse: “Acho que não vou ter mais os sonhos.”
“Porquê, filho?” perguntou a Leonor.
“Porque acho que lembrei de tudo o que precisava.”
Parecia mais velho do que sete anos.
Como se tivesse fechado um capítulo.
Daquele dia em diante, as memórias pararam.
Não mencionou mais a porta vermelha ou o carro verde.
Voltou a desenhar dinossauros, não casas.
A brincar à apanhada com os irmãos.
A rir como se nada tivesse acontecido.
Nós não insistimos.
Deixámos passar.
Meses depois, recebi uma carta pelo correio.
SemDentro dela, havia uma foto desbotada de uma casa com porta vermelha, um caminho de pedras e um pequeno jardim cheio de cravos, junto a um bilhete escrito à mão: _”Pensei que gostariam disto. —D. Amélia”_.