**Diário Pessoal**
Todos sempre brincavam que precisaríamos de laços coloridos para distingui-los.
Então fizemos—azul, verde-água, vermelho.
Três cópias perfeitas, até mesmo nas covinhas.
Completavam as frases um do outro.
Tinham sua própria linguagem.
Compartilhavam tudo.
Era como criar uma única alma em três corpos.
Mas há algumas semanas, o Verde-Água—o Tomás—começou a acordar chorando.
Não eram pesadelos.
Eram memórias.
Era assim que ele as chamava.
Dizia coisas como: “Lembra da casa velha com a porta vermelha?” Nunca tivemos uma porta vermelha.
Ou: “Por que não vemos mais a Dona Isabel? Ela sempre me dava rebuçados.” Não conhecíamos nenhuma Isabel.
Ontem à noite, olhou-me nos olhos e disse: “Sinto falta do carro velho do pai. Aquele verde com o pára-choques amassado.”
Fiquei paralisado.
Não estava falando do meu carro.
Eu dirijo um Renault.
E nunca tivemos um carro verde na família.
Primeiro, achamos que era imaginação.
Os meninos tinham sete anos.
Contavam histórias absurdas o tempo todo—navios piratas, dinossauros no sótão, fadas debaixo do alpendre.
Mas isso era diferente.
Os olhos do Tomás ficavam vidrados quando falava, como se estivesse em outro lugar.
Não estava tentando impressionar ninguém.
Ele realmente acreditava no que dizia.
Minha esposa, a Sofia, tentou acalmá-lo.
“Talvez tenha sido um sonho, querido. À vezes, os sonhos parecem reais.”
Tomás abanou a cabeça devagar.
“Não. Eu me lembro. A porta vermelha rangia quando abria. A mãe pedia para eu não bater.”
“A mãe” era eu.
Mas ele não olhava para mim quando dizia isso.
Era como se eu tivesse desaparecido, substituída por outra pessoa na mente dele.
Começámos a anotar tudo o que ele dizia.
Queríamos falar com o pediatra.
Talvez até um psicólogo infantil, se continuasse.
Depois, Tomás começou a desenhar.
Página após página de uma casa com porta vermelha.
Sempre os mesmos detalhes: uma chaminé com hera, um caminho de pedra, um pequeno jardim cheio de cravos.
Os irmãos, o Martim e o Afonso, olhavam os desenhos e diziam: “Que casa fixe”, mas não pareciam perturbados.
Tomás não estava assustado.
Apenas… triste.
Como se lhe tivessem tirado algo precioso.
Num sábado de manhã, encontrei-o na garagem, revirando caixas.
Olhou para mim, as mãos sujas de pó.
“Ainda temos a minha luva de basebol?”
“Tu não jogas basebol, filho”, respondi suavemente.
“Jogava”, ele insistiu.
“Antes de cair.”
Abaixei-me.
“Antes de o quê?”
“Antes de cair da escada. Aquela que o pai me disse para não subir.”
Tocou a parte de trás da cabeça.
“Doeu muito.”
Fiquei a olhar para ele.
Havia uma calma certeza na voz dele.
Não medo.
Não confusão.
Apenas… recordação.
Marcámos uma consulta com a Dra. Isabel Costa, a pediatra.
Ela ouviu com atenção, anotou tudo e recomendou um psicólogo infantil especializado em memórias precoces.
“Não estamos a sugerir que haja algo errado”, assegurou-nos.
“Mas se estas recordações o perturbam—ou distorcem a realidade dele—vale a pena investigar.”
Marcámos a sessão.
O psicólogo, o Dr. João Almeida, era caloroso e gentil.
Tomás gostou dele logo.
Após duas sessões, o Dr. Almeida disse-nos em privado: “Isto não é brincadeira imaginária típica. Ele descreve coisas com um nível de detalhe que sugere uma memória profundamente enraizada. Alguns chamam de memórias de vidas passadas, embora eu saiba que isso seja controverso.”
Vidas passadas? Quase ri.
Queria uma explicação médica.
Uma particularidade do cérebro.
Imaginação hiperativa.
Não… reencarnação.
Mas o Dr. Almeida não defendia teorias.
Apenas disse: “Seja qual for a origem, ele está a processar algo muito real para ele. Não o desvalorizem.”
Naquela noite, pesquisei na internet.
“Crianças que se lembram de vidas passadas.”
Encontrei inúmeras histórias.
Um menino que lembrava de morrer num acidente de carro.
Uma menina que falava sueco fluentemente sem nunca o ter ouvido.
Pais como nós, divididos entre a lógica e algo mais estranho.
Um artigo mencionava uma investigadora chamada Dra. Ana Lopes, que entrevistava crianças com experiências semelhantes.
Ela vivia a duas cidades de distância.
Mandei-lhe um email.
Ela respondeu no dia seguinte.
“Adoraria falar com o seu filho.”
Marcámos uma videochamada.
Tomás, tímido no início, escondia-se atrás de mim, mas a Dra. Ana tinha um jeito suave.
Fez perguntas simples.
“Lembras-te do teu nome daquela época?” Tomás acenou.
“Rui.”
“E do teu sobrenome?” Ele franziu a testa.
“Algo como Mendes. Ou Fernandes. Não me lembro bem.”
“Onde vivias?”
“Na casa com a porta vermelha. Na região do Alentejo. Perto da linha do comboio.”
Nós vivíamos no Porto. Nenhum de nós tinha estado no Alentejo.
A Dra. Ana perguntou se ele lembrava de mais alguma coisa—escolas, amigos, o que lhe tinha acontecido.
Ele hesitou, depois sussurrou: “Não devia ter subido na escada. Mas queria consertar a bandeira. Caí. A minha cabeça…”
Tocou o mesmo lugar outra vez.
Depois ficou em silêncio.
A Dra. Ana disse que investigaria.
Tinha acesso a registos antigos e conhecia casos parecidos.
Três dias depois, ligou-me.
“Encontrei um Rui Mendes. Viveu em Évora. Morreu em 1982. Tinha sete anos. Caiu de uma escada no quintal. Fraturou o crânio.”
Um arrepio percorreu-me a espinha.
Ela mandou-me o obituário por email.
Havia até uma foto desfocada.
O menino parecia assustadoramente com o Tomás.
Os mesmos olhos.
A mesma madeixa rebelde.
Não sabia como processar aquilo.
Não queria assustar o Tomás—nem os irmãos.
Contei à Sofia.
Passámos a noite acordados a conversar.
Ela chorou.
Não de medo.
De algo mais difícil de definir.
Tristeza, talvez.
Confusão.
Espanto.
Na manhã seguinte, Tomás veio à cozinha e disse: “Acho que não vou mais ter os sonhos.”
“Porquê, anjinho?” perguntou a Sofia.
“Porque acho que me lembrei de tudo o que precisava.”
Soava mais velho do que sete anos.
Como se tivesse fechado um capítulo.
A partir daquele dia, as memórias pararam.
Não voltou a falar da porta vermelha ou do carro.
Passou a desenhar dinossauros, não casas.
A brincar à apanhada com os irmãos.
A rir como se nada tivesse acontecido.
Não pressionámos.
Deixámos para trás.
Passaram-se meses.
Até que, uma tarde, recebi uma carta.
Sem remetente.
DDentro dela, estava uma foto desbotada da casa com a porta vermelha, e uma nota curta: “Pensei que gostarias de ter isto. —Dona Isabel.”