**Diário Pessoal**
Já se passou um ano desde que o meu marido, Ricardo, partiu, e todos os dias 15 do mês, visito o seu túmulo—só eu, o silêncio e as nossas memórias. Mas alguém chegava sempre antes de mim, deixando flores frescas. Quem seria? Quando descobri, fiquei imóvel, com lágrimas a escorrer-me pela face.
Dizem que a dor muda com o tempo, mas nunca desaparece. Depois de 35 anos de casamento, ficava sozinha na nossa cozinha, assustada com o vazio onde antes se ouviam os passos matinais do Ricardo.
Um ano após o acidente, ainda procurava-o enquanto dormia. Acordar sem ele não se tornou mais fácil—apenas aprendi a carregar o peso da saudade.
“Mãe? Pronta?” A Sofia estava à porta com as chaves na mão. A minha filha tinha os olhos castanhos e quentes do pai, com reflexos dourados que captavam a luz de um jeito especial.
“Só vou buscar o casaco, querida,” respondi, forçando um sorriso.
Era dia 15—o nosso aniversário de casamento e a minha visita mensal ao cemitério. Ultimamente, a Sofia vinha comigo, preocupada por eu ir sozinha.
“Posso ficar no carro se quiseres um tempo à vontade,” ofereceu ela, ao entrarmos no cemitério.
“Obrigada, meu amor. Não demoro.”
O caminho até ao túmulo do Ricardo era familiar—doze passos a partir do grande carvalho, depois virar à direita no anjo de pedra. Mas, ao aproximar-me, parei.
Um ramo de rosas brancas estava cuidadosamente colocado junto à lápide.
“Que estranho,” murmurei, tocando nas pétalas.
“O quê?” A Sofia aproximou-se.
“Alguém deixou flores outra vez.”
“Talvez algum amigo do pai?”
Abanei a cabeça. “Estão sempre frescas.”
“Incomoda-te?”
Olhei para as rosas, sentindo um conforto estranho. “Não. Quero saber quem se lembra dele assim.”
“Talvez descubramos na próxima vez,” disse a Sofia, apertando-me o ombro.
A caminho do carro, senti como se o Ricardo estivesse a olhar para mim, com aquele sorriso desajeitado que tanto me faz falta.
“Quem quer que seja,” disse, “deve tê-lo amado também.”
A primavera deu lugar ao verão, e cada visita trazia flores novas no túmulo. Margaridas em junho. Girassóis em julho. Sempre frescas, sempre lá antes do meu domingo.
Numa manhã quente de agosto, resolvi ir mais cedo. Talvez encontrasse a pessoa misteriosa. A Sofia não pôde ir, por isso fui sozinha.
O cemitério estava calmo, só se ouviam as folhas secas a serem varridas. Um jardineiro trabalhava perto de um monumento. Conhecia-o—o senhor de mãos calejadas que sempre acenava quando passávamos.
“Com licença,” aproximei-me. “Posso perguntar-lhe uma coisa?”
Ele parou, enxugando o suor da testa. “Bom dia, senhora.”
“Alguém tem deixado flores no túmulo do meu marido todas as semanas. Sabe quem é?”
Ele nem hesitou. “Ah, sim. O rapaz da sexta-feira. Vem pontualmente desde o verão passado.”
“Um rapaz?” O meu coração acelerou. “Um homem vem todas as sextas?”
“Sim. Reservado. Uns trinta e poucos anos. Cabelo escuro. Traz as flores pessoalmente, coloca-as com cuidado. Fica algum tempo também. Às vezes fala.”
A minha mente disparou. O Ricardo tinha muitos amigos—colegas de trabalho, antigos alunos. Mas alguém tão dedicado?
“Se vir o senhor outra vez,” hesitei, “poderia tirar uma foto? Preciso saber.”
Ele olhou para mim e acenou. “Compreendo, senhora. Farei o possível.”
“Obrigada,” disse, comovida. “Significa muito.”
“Algumas ligações,” disse ele, olhando para o túmulo, “não desaparecem, mesmo depois da partida. Isso é especial, à sua maneira.”
Quatro semanas depois, o telemóvel tocou enquanto dobava roupa. Era o jardineiro, o António. Eu dera-lhe o meu número caso descobrisse algo.
“Senhora? É o António, do cemitério. Tirei a foto que pediu.”
As minhas mãos tremiam ao agradecer, prometendo passar por lá nessa tarde.
O ar de setembro estava fresco quando entrei no cemitério. O António estava junto ao barracão, segurando o telemóvel com dificuldade.
“Ele veio mais cedo hoje,” disse. “Tirei a foto de longe, atrás das árvores. Espero que sirva.”
“Está perfeito. Obrigada.”
Ele entregou-me o telemóvel, e quando olhei para o ecrã, congelei.
O homem ajoelhado junto ao túmulo do Ricardo, a colocar tulipas amarelas, era tão familiar. Os ombros largos, a inclinação da cabeça… Já o vira assim tantas vezes à nossa mesa de jantar.
“Está bem, senhora?” A voz do António parecia distante.
“Sim,” respondi, devolvendo o telemóvel. “Obrigada. Conheço-o.”
Saí do cemitério atordoada, a mente a mil. Enviei uma mensagem à Sofia: “O jantar está marcado para hoje?”
Ela respondeu rápido: “Sim! O Pedro está a fazer a lasanha dele. Às 20h. Estás bem?”
“Perfeito. Até logo.”
O cheiro de alho e molho de tomate enchia a casa da Sofia quando cheguei. O meu neto, o Martim, de sete anos, veio correndo abraçar-me.
“Avó! Trouxeste bolachas?”
“Não hoje, querido. Na próxima vez, prometo.”
O meu genro, Pedro, apareceu no corredor, limpando as mãos a um pano.
“Cláudia! Chegaste na hora. O jantar está quase pronto.” Inclinou-se para o nosso habitual beijo no rosto.
O jantar decorreu como sempre—o Martim a pedir mais pão de alho, a Sofia a gozar com o Pedro. Ri-me, mas a minha cabeça estava noutro lugar.
Quando a Sofia levou o Martim para o banho, o Pedro e eu ficamos a arrumar a mesa em silêncio.
“Mais vinho?” Ofereceu ele, erguendo a garrafa.
“Sim.” Peguei no copo e inspirei fundo. “Pedro, preciso de te perguntar uma coisa.”
Ele olhou para mim, surpreendido. “Sim?”
“Eu sei que és tu. És tu que deixas as flores no túmulo do Ricardo.”
O copo que ele segurava parou a meio caminho da máquina de lavar. Pousou-o devagar, os ombros curvados como se um peso enorme os apertasse.
“Há quanto tempo sabes?”
“Só hoje. Mas as flores… estão lá há meses. Todas as sextas.”
O Pedro fechou os olhos por um instante e sentou-se. “Não queria que descobrisses. Não foi… para me exibir.”
“Porquê, Pedro? Tu e o Ricardo… não eram assim tão próximos.”
Ele olhou para mim, os olhos brilhantes. “É aí que te enganas, Cláudia. Aproximámo-nos… no fim.”
A Sofia desceu as escadas, parando ao sentir a tensão. “O que se passa?”
O Pedro olhou para mim, depois para ela. “A tua mãe sabe… sobre o cemitério.”
“Cemitério? Do que estão a falar?”
“As rosas que vimos no túmulo do pai… alguém tem deixado flores todas as semanas há um ano. Hoje descobri queE quando o Pedro finalmente contou a verdade sobre aquela noite, compreendemos que o amor do Ricardo ainda nos unia, mesmo na ausência.