**Diário Pessoal**
João Mendes tinha tudo o que um homem poderia desejar—fortuna, prestígio e uma imensa propriedade nas colinas além de Lisboa.
Como fundador de uma das maiores empresas de cibersegurança do país, passou mais de vinte anos transformando uma visão num império. Ainda assim, apesar de todas as conquistas, a sua luxuosa casa ecoava com um silêncio vazio. Nenhum vinho fino ou quadro valioso conseguia preencher aquele vazio.
Todas as manhãs, o carro de João seguia o mesmo caminho para o centro, passando pelo bairro histórico da cidade. Recentemente, algumas crianças sem-abrigo tinham começado a ficar perto de uma pastelaria ali perto—aquela que exibia fotos de casamentos na montra.
Uma foto, em particular—o retrato do casamento de João, há dez anos—estava pendurado no canto superior direito. Tinha sido tirada pela irmã do dono da pastelaria, uma fotógrafa amadora, e João permitira que fosse exposta, porque captava o que ele julgava ser o dia mais feliz da sua vida.
Mas essa felicidade desaparecera demasiado rápido. Beatriz, a sua mulher, sumira-se apenas seis meses após o casamento. Sem bilhete, sem exigências. Nada. As autoridades classificaram o caso como “suspeito”, mas, sem provas, o arquivaram. João nunca mais se casou. Enterrou-se no trabalho e construiu uma fortaleza digital em torno da sua vida. Ainda assim, uma pergunta atormentava-o diariamente: O que aconteceu à Beatriz?
Numa manhã chuvosa de quinta-feira, a caminho de uma reunião de diretoria, o trânsito parou perto da pastelaria. João olhou pela janela escurecida e avistou um rapaz—talvez com dez anos—descalço e ensopado, a olhar para a foto. A princípio, quase não lhe deu atenção… até o miúdo apontar para a imagem e dizer baixinho a um vendedor próximo:
“Aquela é a minha mãe.”
O coração de João falhou.
Baixou o vidro a meio. O rapaz parecia magro, o cabelo desalinhado, a camisola larga a balançar-lhe no corpo. João estudou-lhe o rosto—e sentiu um aperto no estômago. Os olhos do miúdo eram inconfundíveis. Castanho-verdes, tal como os da Beatriz.
“Olá, miúdo,” chamou João. “O que é que acabaste de dizer?”
O rapaz virou-se, a pestanejar. “Aquela é a minha mãe,” repetiu, apontando outra vez para a foto. “Ela cantava para mim antes de dormir. Lembro-me da voz dela. Um dia, desapareceu.”
Ignorando os protestos do motorista, João saiu do carro. “Como te chamas, filho?”
“Diogo,” disse o rapaz, a tremer.
“Diogo…” João ajoelhou-se para ficar à altura dele. “Onde é que moras?”
Diogo desviou o olhar. “Em lado nenhum. Às vezes debaixo da ponte. Outras vezes perto da linha do comboio.”
“Lembras-te de mais alguma coisa sobre a tua mãe?” perguntou João, mantendo a voz calma.
“Ela gostava de rosas,” respondeu Diogo. “E usava um colar com uma pedra branca. Como uma pérola.”
O coração de João apertou. Beatriz sempre usara um pendente de pérola—uma herança da mãe dela. Era raro, único.
“Preciso de te fazer uma pergunta importante,” disse João. “Sabes quem é o teu pai?”
Diogo abanou a cabeça. “Nunca o conheci.”
A dona da pastelaria saiu, atraída pelo movimento. João virou-se para ela. “Já viste este rapaz antes?”
Ela acenou. “Sim, aparece de vez em quando. Nunca pede nada. Só fica a olhar para aquela foto.”
João cancelou a reunião ali mesmo. Levou Diogo a uma tasca próxima e pediu-lhe algo quente para comer. Enquanto estavam sentados, João fez-lhe mais perguntas com cuidado. As memórias de Diogo eram confusas—pedaços soltos. Uma mulher a cantar, um apartamento com paredes verdes, um urso de peluche chamado Bento. João mal conseguia processar tudo, mas algo dentro dele dizia-lhe que a verdade estava finalmente a vir à tona.
Marcou um teste de ADN. Mesmo assim, naquela noite, uma pergunta não o deixava dormir:
Se o Diogo é o meu filho… onde é que esteve a Beatriz todos estes anos?
Três dias depois, chegaram os resultados.
99,9% de compatibilidade: João Mendes era o pai biológico de Diogo Ventura.
João olhou para a pasta em silêncio atordoado. Aquele rapaz maltrapilho que apontara para uma foto na montra de uma pastelaria—era seu filho. Um filho que nunca soube que tinha.
Mas como? Beatriz nunca lhe dissera que estava grávida. Por outro lado, desaparecera seis meses depois do casamento. Se soubesse, talvez não tivesse tido tempo de lhe contar. Ou pior—talvez tivesse tentado, e algo a impedira.
João iniciou uma investigação privada. Com as suas ligações, tudo avançou depressa. Recontratou um detetive reformado, RuiCom o tempo, aquele retrato na pastelaria deixou de ser uma lembrança dolorosa e transformou-se num símbolo da família que, contra todas as probabilidades, o destino lhes devolveu.