**21 de junho, quinta-feira**
Quando o Tiago ainda não tinha feito cinco anos, o seu pequeno mundo desmoronou-se. A mãe já não estava lá. Ele ficou parado no canto da sala, imóvel de confusão — o que se passava? Porque é que a casa estava cheia de pessoas estranhas? Quem eram aquelas pessoas? Porque é que todos estavam tão calados, tão diferentes, sussurrando e evitando olhá-lo nos olhos?
O menino não compreendia porque ninguém sorria. Porque lhe diziam: “Tem força, pequenino,” e o abraçavam, mas com um ar de quem sabia que ele tinha perdido algo muito importante. E ele só queria ver a mãe.
O pai estava distante o dia todo. Nem uma vez se aproximou, nem o abraçou, nem disse uma palavra. Ficou sentado num canto, vazio, como se já não fosse dele. O Tiago aproximou-se do caixão e ficou muito tempo a olhar para a mãe. Ela não era como ele a conhecia — sem calor, sem sorriso, sem canções para o embalar antes de dormir. Pálida, fria, imóvel. Isso assustou-o. E ele já não teve coragem de se aproximar outra vez.
Sem a mãe, tudo ficou diferente. Cinzento. Vazio. Dois anos depois, o pai casou-se outra vez. A nova mulher — a Cátia — nunca se tornou parte do mundo dele. Pelo contrário, parecia irritada com a sua presença. Resmungava por tudo, criticava-o como se procurasse motivos para estar zangada. E o pai calava-se. Não o defendia. Não interferia.
Todos os dias, o Tiago sentia uma dor que guardava dentro de si. A dor da perda. A saudade. E, com cada dia que passava, mais forte se tornava o desejo de voltar ao tempo em que a mãe estava viva.
Hoje era um dia especial — o aniversário dela. Acordou com uma ideia fixa na cabeça: tinha de ir visitá-la. Ao cemitério. Levar flores. Cravos brancos — eram os seus favoritos. Lembrava-se deles nas suas mãos, nas fotografias antigas, como brilhavam ao lado do seu sorriso.
Mas onde arranjar dinheiro? Decidiu pedir ao pai.
— Pai, podes dar-me algum dinheiro? É mesmo importante…
Mal começou a frase, a Cátia saiu da cozinha, furiosa:
— O que é isto?! Já começaste a exigir dinheiro ao teu pai?! Tens alguma ideia do trabalho que custa ganhar um salário?
O pai olhou para ele e tentou acalmá-la:
— Cátia, espera. Ele nem disse para quê. Filho, explica, o que precisas?
— Queria comprar flores para a mãe. Cravos brancos. Hoje é o aniversário dela…
A Cátia soltou um riso amargo, cruzou os braços:
— Ora essa! Flores! Dinheiro para flores! Queres também um jantar num restaurante? Vai buscar umas flores do jardim, isso chega!
— Lá não há cravos — respondeu o Tiago, baixinho mas com firmeza. — Só vendem na loja.
O pai olhou para ele, pensativo, depois virou-se para a mulher:
— Cátia, vai tratar do almoço. Estou com fome.
Ela bufou e desapareceu na cozinha. O pai voltou ao jornal. O Tiago percebeu: não lhe ia dar dinheiro. Nem mais uma palavra foi dita.
Entrou no quarto, tirou o mealheiro velho. Contou as moedas. Era pouco. Mas talvez chegasse?
Sem perder tempo, saiu de casa a correr, em direção à florista. Já de longe, viu os cravos brancos na montra. Tão brancos, quase irreais. Parou, prendendo a respiração.
Depois, entrou decidido.
— Que queres? — perguntou a vendedora, mal-educada, olhando-o de cima a baixo. — Deves-te ter enganado. Aqui não há bonecos nem doces. Só flores.
— Eu não me enganei… Queria mesmo comprar. Cravos brancos… Quanto custa um ramo?
Ela disse o preço. O Tiago tirou as moedas do bolso. Mal chegavam a metade.
— Por favor… — implorou. — Posso trabalhar! Venho todos os dias, ajudo: limpo, passo o pano, lavo o chão… Só me dê este ramo e eu pago depois…
— Mas estás bom da cabeça? — bufou ela, irritada. — Achas que eu sou rica para andar a dar flores? Desanda daqui! Se não, chamo a polícia!
Mas o Tiago não desistia. Precisava daquelas flores hoje. Voltou a insistir:
— Vou pagar tudo! Prometo! Vou ganhar o dinheiro! Por favor, entenda…
— Olha só, o artista! — gritou a mulher, tão alto que pessoas na rua se viraram. — Onde estão os teus pais? Será que devia chamar os serviços sociais? Que fazes aqui sozinho? Último aviso — desaparece antes que eu ligue!
Foi então que um homem se aproximou da loja. Tinha visto a cena.
Entrou precisamente quando a mulher gritava com o rapaz. Aquilo incomodou-o — não suportava injustiças, especialmente com crianças.
— Porque está a gritar assim? — perguntou, sério. — Está a tratá-lo como se ele tivesse roubado alguma coisa. E ele é só um miúdo.
— E você quem é? — respondeu ela, agressiva. — Se não sabe do assunto, não se meta. Ele quase me roubou um ramo!
— Sim, claro, “quase roubou” — o homem levantou a voz. — Foi você que o atacou como uma fera! Ele precisa de ajuda, e você ameaça-o. Não tem vergonha?
Virou-se para o Tiago, que estava encolhido num canto, a limpar as lágrimas.
— Olá, amigo. Chamo-me Rui. Porque estás assim? Querias comprar flores e não tens dinheiro?
O Tiago fungou, limpou o nariz com a manga, e falou com uma voz trémula:
— Queria comprar cravos… Para a mãe… Ela adorava-os… Mas partiu há três anos… Hoje é o aniversário dela… Queria ir ao cemitério levar-lhe flores…
O Rui sentiu o coração apertar. A história do rapaz tocou-o profundamente. Agachou-se ao seu lado.
— Sabes, a tua mãe teria orgulho em ti. Nem todos os adultos levam flores num dia destes, e tu, com oito anos, lembras-te e queres fazer algo bonito. Vais ser um grande homem.
Depois, virou-se para a vendedora:
— Mostre-me os cravos que ele queria. Quero comprar dois ramos — um para ele, outro para mim.
O Tiago apontou para os cravos brancos na montra, que brilhavam como porcelana. O Rui hesitou por um instante — eram exatamente os mesmos que tinha intenção de comprar. Não comentou, mas pensou: “Coincidência ou sinal?”
Minutos depois, o Tiago saía da loja com o seu ramo. Segurava-o como um tesouro, incrédulo por ter conseguido. Voltou-se para o homem e disse, tímido:
— Tio Rui… Posso ficar com o seu número? Vou pagar-lhe. Palavra de honra.
O homem riu-se com bondade.
— Não duvido. Mas não é preciso. Hoje é um dia especial para uma mulher que me é querida. Há muito que esperava dizer-lhe o que sinto. Por isso, estou de bom humor. Fico contente por ter feito uma boa ação. Além disso, parece que os nossos gostos coincidem — tanto a tua mãe como a minha Joana adoravam estas flores.
Calou-se por umE naquele instante, enquanto segurava as flores que tanto lembravam Joana, Rui percebeu que talvez a vida lhe estivesse dando uma segunda chance – não para recuperar o passado, mas para honrar o amor que ainda vivia em pequenos gestos, como aqueles cravos brancos que agora uniam duas histórias de saudade.