Depois de doze anos de serviço — por desertos, selvas e postos esquecidos — o Sargento-Ajudante Tiago Mendes chegou a casa em silêncio.
Nada de desfiles. Nada de celebrações. Só o rangido de uma porta de rede e o eco das suas botas no alpendre da casa dos pais, já falecidos, numa quinta serena no Alentejo.
Ele gostava do silêncio.
Precisava dele.
A guerra levara mais que o seu ombro esquerdo e metade do seu sono — levara a sua gente. Amigos que nunca tiveram uma segunda chance. Irmãos de armas transformados em bandeiras dobradas. Tiago voltara com um coração assombrado e uma claudicação de que se recusava a falar.
Pensou que a cura viria devagar.
Mas então… os presentes começaram.
Começou com uma pequena caixa de bolachas — ainda quentinhas — deixada no alpendre numa manhã.
Sem bilhete. Sem nome.
Apenas doçura e silêncio.
Uma semana depois: margaridas frescas num frasco de vidro.
Depois, uma carta escrita à mão em papel floreado.
“És visto. És lembrado. E és mais que as tuas cicatrizes.”
Tiago leu-a duas vezes.
Dobrou-a e guardou-a na gaveta junto à pia, sem saber o que fazer com o calor repentino que lhe inundava o peito.
A cada poucos dias, aparecia um novo bilhete ou prenda. Pão de banana. Um cachecol. Uma Bíblia de bolso com versos sublinhados a tinta cor-de-rosa.
Cada mensagem era diferente.
Mas sempre encorajadora.
Sempre gentil.
Sempre anónima.
Perguntou pela vila.
A empregada do café encolheu os ombros. “Não fui eu, amor.”
A florista sorriu. “Fazemos entregas, mas não a ti. Deve ser alguém da terra.”
Até o carteiro ergueu uma sobrancelha. “Não foi pelos CTT, amigo.”
Naquela noite, a curiosidade venceu-o.
Colocou uma cadeira junto à janela, baixou as luzes e esperou.
À meia-noite, já cochilava.
Mas às 2h17, um movimento no alpendre.
Tiago abriu os olhos a tempo de ver uma figura pequena — encapuzada, esbelta — a pisar suavemente o alpendre, deixar um embrulho envolto em pano e afastar-se.
Levantou-se rápido, saiu — calmo mas firme.
Mas quando abriu a porta…
A figura virou-se o suficiente ao luar para ele ver o seu rosto.
E algo dentro de Tiago desmoronou-se.
Era Leonor Matias.
A sua noiva.
Pelo menos, costumava ser — antes daquela última missão.
Antes da operação que correu mal, da explosão, do coma.
Acordara três meses depois, desorientado num leito de hospital, e disseram-lhe que Leonor se mudara, incapaz de lidar, incontactável.
Assumira que ela partira para sempre. Que chorara e seguira em frente.
Mas agora, diante dele, com lágrimas cintilantes nos olhos, sussurrou: “Não sabia como voltar. Não sabia se querias que eu voltasse.”
Tiago não conseguia falar.
Não conseguia respirar.
Desceu os degraus e estendeu a mão — não como um militar, mas como um homem a sair da névoa.
Ela segurava o último presente — uma foto dos dois, anos atrás, sentados sob o salgueiro junto ao rio, a cabeça dela no seu ombro.
“Nunca deixei de te amar,” disse. “Só não sabia como enfrentar a versão de ti que voltou.”
Ele ajoelhou-se diante dela — não de dor, não de ferimento, mas pelo peso de tudo que carregara sozinho… agora aliviado.
Lágrimas silenciosas escorriam-lhe pelo rosto.
Leonor ajoelhou-se ao seu lado.
E, pela primeira vez em anos, ele permitiu-se ser abraçado.
Naquela noite, sentaram-se lado a lado no alpendre enquanto o amanhecer raiava, duas chávenas de café fumegantes entre eles, o último bilhete na mão de Tiago:
“Mesmo as coisas partidas podem tornar-se belas outra vez. Esperei até que estivesses pronto.”
E lá bem no fundo, onde antes havia tiros e fantasmas, algo desabrochou.