Uma menina me perguntou: ‘Quer ser meu pai?’6 min de lectura

Meu nome é Vicente Lopes, mas até a minha mãe não me chamava de Vicente. No meu colete, aquele que uso há trinta e oito anos, o patch diz apenas “Ceifeiro.”

Sou, ou era, o presidente dos Lobos do Deserto MC. Tenho 64 anos, um metro e noventa e cinco de altura e peso 125 quilos antes do pequeno-almoço. A barba chega-me ao peito, os braços são um mapa de tatuagens, e a minha voz parece rodas de cascalho. As crianças não se aproximam de mim. Fogem.

Estava no posto Galp na estrada nacional 2, perto de Évora, a abastecer a minha Harley. Era terça-feira. Calor. Daquele seco que te suga a alma. Pensava numa cerveja fresca e na dor no joelho esquerdo, que berrava mais alto que um novato no clube.

Foi então que senti. Um puxão. Um toque pequeno e insistente no meu colete de couro.

Não sou homem de me assustar, mas baixei o olhar e o mundo… inclinou-se.

Era uma coisa. Uma coisinha. Não devia ter mais de cinco anos, com tranças loiras, olhos verdes enormes e uma t-shirt rosa suja. Segurava um coelho de peluche desgastado, com uma orelha a menos. Na outra mão, tinha um punho de ferro agarrado ao meu colete.

Não estava assustada. Apenas… olhava para mim. Como se eu fosse a resposta.

Olhei em volta. Ninguém. Só nós e o som da bomba de gasolina.

“Este é o Senhor Saltitão,” disse ela, voz clara e pequenina, erguendo o coelho.

“Ele também não tem pai.”

Antes que eu pudesse responder — o que se diz a uma coisa destas? — a porta do posto abriu-se com estrondo. Uma mulher, velha, frágil como papel, com a cara de quem viu um fantasma, saiu a correr, um saco de batatas na mão.

“Bia! BIA! Meu Deus, afasta-te desse homem! Vem já para aqui!”

Estava aterrada. Mas a menina, a Bia, não se mexeu. Pelo contrário, apertou mais o colete.

“Não, avó,” disse a Bia.

“Quero este. Ele parece só. Como eu.”

A velha, a Dona Amélia, parou em seco. Viu como a neta se agarrava a mim — não com medo, mas com uma esperança desesperada.

“Oh, senhor, peço imensa desculpa,” disse a avó, ofegante, chegando finalmente perto de nós. Tentou desenroscar os dedos da Bia do meu colete.

“Ela… ela não percebe. O pai dela… a mãe… tem sido um ano muito difícil.”

Olhei para a menina, que agora se escondia atrás da minha perna, usando-me como escudo.

“Um ano difícil?” perguntei, a voz grave como um trovão.

Foi então que a Bia disse as palavras que me partiram o mundo ao meio.

Saiu de trás da minha perna, olhou a avó nos olhos e disse, com a honestidade simples e brutal de uma criança:

“O meu pai está na prisão por matar a minha mãe. A avó diz que preciso de um novo. Quer ser o meu pai?”

O silêncio naquela bomba de gasolina foi ensurdecedor. A bomba parou. Um camião passou a rugir. E a Dona Amélia… desmoronou-se.

Não chorou, estilhaçou-se. Ali mesmo no cimento manchado de óleo, esta professora reformada de 67 anos, esta mulher que era tudo o que restava de uma família, caiu por dentro.

“Estou a falhar com ela,” soluçou, com as mãos no rosto.

“Não sei como explicar. Não sei ser mãe, pai e avó. Tenho 67 anos. Devia estar num cruzeiro. E o meu filho… o meu filho matou-a…”

A Bia, com uma frieza arrepiante, acariciou o braço da avó. “A avó precisa de sestas agora,” disse-me, num sussurro confidencial.

“Ela precisa sempre de sestas.”

Olhei para aquela menina de cinco anos, que tinha visto um horror capaz de partir homens. Olhei para aquela avó, a afogar-se numa vida que nunca pediu.

E pensei na minha menina. Na minha Joana. Teria 30 anos agora. Teria a idade da Bia quando um bêbado embateu no carro da minha mulher e as levou as duas, há 22 anos.

O buraco no meu peito, aquele que estava vazio há 22 anos… doeu de repente.

Ajoelhei-me. Os joelhos estalaram como tiros, e fiz uma careta. Fiquei à altura da Bia.

“Olá, pequenina,” disse, com uma voz mais suave do que usava há décadas.

“Tenho a certeza que a tua avó cuida muito bem de ti.”

“Ela tenta,” disse a Bia, com a mesma seriedade.

“Mas ela é velha. Não sabe brincar. E não sabe como são os pais. Só sabe ser avó.”

Olhou-me nos olhos.

“O senhor parece saber como são os pais. É grande.”

Um nó formou-se na minha garganta.

“Não posso ser teu pai, pequenina,” disse.

“Mas… posso ser teu amigo? Achas bem?”

Ela pensou. Muito seriamente.

“Os amigos ensinam a andar de mota?”

“Quando fores mais velha. Talvez.”

“Os amigos vão a festas de chá?”

“Se forem convidados.”

“Os amigos,” baixou a voz, “protegem de pessoas más?”

O nó apertou.

“Sim, pequenina,” disse, rouco.

“Os amigos fazem mesmo isso.”

“Ok,” decidiu, esticando a mão.

“Pode ser meu amigo. Chamo-me Beatriz Amélia Silva. Tenho cinco anos e três quartos. Como se chama?”

“Vicente.”

“Isso é difícil. Vou chamar Sr. V.”

A Dona Amélia já tinha secado as lágrimas. Olhava para mim, com a cara entre o medo e uma esperança agonizante.

“Senhor… nós… não podemos abusar…”

Levantei-me. Tirei a carteira do bolso de trás, um cartão de visita, e entreguei-lhe.

“Minha senhora, chamo-me Vicente Lopes. Sou dono da oficina Lobos do Deserto, a duas ruas daqui. Está… está a fazer um bom trabalho. Mas não consegue fazê-lo sozinha.” Apontei para o cartão.

“Se precisar de alguma coisa — um babysitter, o carro arranjado, ou só… alguém para falar que não tenha cinco anos — ligue para esse número.”

Ela olhou para o cartão.

“Porquê? Porque o faria?”

Olhei para a Bia, que agora fazia o Senhor Saltitão acenar à minha bota.

“Porque tive uma filha, um dia,” disse, as palavras a saberem a ferrugem.

“E porque ninguém devia criar uma criança sozinho neste mundo.”

Subi para a mota, o motor a rugir com um som que costuma assustar as pessoas. A Bia nem pestanejou. Apenas acenou.

Fui-me embora, mas não consegui esquecer aquele pequeno punho no meu colete. Pensei que era tudo. Uma terça-feira estranha e triste.

Enganei-me. Era só o começo.

Parte 2

A Dona Amélia ligou três dias depois.

Era demasiado orgulhosa para pedir ajuda. A voz era fina, trémula.

“Sr. Lopes? É a Amélia, do posto de gasolina. Eu… só queria agradecer outra vez. Mas… bem, a Bia não parou de falar do ‘Sr. V’. Está… está a enlouquecer-me. Quer saber se pode vir ‘inspecionar as motE, assim, numa tarde quente de verão, enquanto os Lobos do Deserto montavam guarda em silêncio, a Bia pegou na minha mão, olhou para o céu como se esperasse ver a mãe, e disse: “Sr. V, acho que o céu mandou você para mim.”

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