Vidas no Mesmo Trajeto: 22 Anos de Rostos Cansados e Esperas Silenciosas

Chamo-me António. Conduzo o Autocarro 14 no Porto. O mesmo percurso há 22 anos. Vejo as mesmas caras. Na sua maioria, caras cansadas. Principalmente os idosos que esperam no cruzamento da Rua do Carvalho com a Avenida dos Pescadores. Ali… sentados. À espera. Como se esperassem que o mundo se lembrasse deles.

Num inverno, começou a aparecer a Dona Guilhermina. Mais de 80 anos. Pequenina. Sempre com aquele casaco lilás desbotado. Sentava-se sozinha no banco, agarrada a uma mala gasta, a fitar a rua vazia. A olhar mesmo. Como se quisesse que o autocarro aparecesse mais depressa. Ou talvez apenas que alguém a visse.

Na maioria dos dias, ninguém via. As pessoas passavam por ela como se fosse parte do banco. Até a própria família… Bom, uma vez, vi-a a chorar baixinho ao telefone. “Só queria ouvir a tua voz, filha… Sim, sim, sei que estás ocupada. Não te preocupes comigo.” Desligou, enxugou os olhos rápido, como se tivesse vergonha. O meu coração… caiu-me aos pés. Eu acenava quando chegava. “Bom dia, Dona Guilhermina!” Ela sorria, mas nunca pelos olhos. Apenas por educação. Como se já estivesse habituada a ser invisível.

Depois, numa terça-feira gelada, ela não apareceu. Nem no dia seguinte. Uma inquietação começou a roer-me. Após o turno, caminhei as três ruas até à sua casinha. Espreitei pela janela embaciada e vi-a caída numa cadeira, o cobertor desalinhado, parecendo terrivelmente só. Bati à porta. Ela abriu, confusa, depois assustada. “Oh! António! O motorista do autocarro! O que… o que se passa?” Só disse: “Não a vi na paragem. Queria saber se está bem, Dona Guilhermina.” Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. “Ninguém… ninguém veio visitar,” sussurrou.

Aquilo mudou tudo. Na próxima vez que ela estava na paragem, não me limitei a acenar. Saí do autocarro antes de abrir a porta. “Está um frio de rachar hoje, Dona Guilhermina! O cachecol bem apertado?” perguntei, apontando. Ela pestanejou, surpresa. “Ora… sim, António. Obrigada por notares.” Trinta segundos. Mas o seu rosto inteiro iluminou-se. Como se eu lhe tivesse entregado ouro.

Comecei a fazer o mesmo pelos outros. A Dona Margarida, que sempre trazia a sua tricot. “Esse cachecol está a ficar lindo, Dona Margarida!” O Senhor Costa, que andava devagar. “Tempo é o que não falta, Senhor Costa! O autocarro não parte sem si.” Pequenos gestos. Nomes. Vê-los.

Depois, aconteceu algo incrível. As outras pessoas começaram a fazer o mesmo. Uma jovem mãe com o bebé ao colo? Sorria à Dona Guilhermina. “Adoro o seu casaco lilás, minha senhora. Tão alegre.” Um adolescente de auscultadores? Tirou um lado. “Precisa de ajuda com essa mala, Dona Margarida?” Numa manhã de neve, vi o Senhor Costa a ajudar a Dona Guilhermina a limpar o banco antes de se sentar. Nada de especial. Apenas… humano.

Não era sobre comida ou resolver problemas. Era sobre ver. Ver a sério uns aos outros. Como se fôssemos importantes. Só porque sim.

A Dona Guilhermina faleceu na primavera passada. Em paz, contou-me a filha (que afinal começou a visitá-la mais). No seu velório, sabem quem apareceu? Não só a família. Eu. A Dona Margarida. O Senhor Costa. A jovem mãe. Até aquele adolescente. Não éramos família, mas éramos as suas pessoas. As pessoas da paragem.

Agora, o Autocarro 14 é diferente. As pessoas conversam. Perguntam como estás a sério. Guardam lugares para quem anda devagar. Partilham guarda-chuvas. Não é barulhento ou especial. Apenas… mais bondoso. Mais quente.

Sou apenas um motorista de autocarro. Mas aprendi uma coisa: às vezes, o mais poderoso que podes dar a alguém não é dinheiro ou comida. É olhá-los nos olhos, dizer o seu nome, e fazê-los saber… que ninguém se esqueceu deles. Aquela pequena centelha? Alastra. Alastra mesmo.

Da próxima vez que vires alguém sentado sozinho — numa paragem, numa loja, até na tua rua, diz apenas “olá”. Usa o nome, se o souberes. Não custa nada. Mas, para alguém que se sente invisível? Pode ser a luz que esperava há tanto tempo. Experimenta. Vê o que cresce.

Que esta história alcance mais corações.

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