Vou ensinar sua esposa a falar direito, seu moleque

— Se a tua mulher não aprender a falar comigo como deve ser, arranco-lhe todos os cabelos, filho!

A voz no telefone vibrava de raiva mal contida — tão cortante e furiosa que abafava até o zumbido monótono do escritório. Tiago apertou o telemóvel contra o ouvido e virou-se para o lado, evitando o olhar curioso de um colega. No monitor, o relatório anual ficara suspenso — gráficos e números que agora não passavam de linhas e dígitos sem sentido. Toda a realidade estava ali, na sua mão: quente, densa e cheia de agressão.

— Mãe, o que aconteceu? — perguntou, cansado, mantendo a voz baixa.

— As minhas amigas vieram cá! A Dona Lúcia, a Adelaide! Mulheres de respeito, não é qualquer uma! Estou a pôr a mesa, a cortar os legumes, o assado no forno. Liguei à Carolina, pedi com educação: “Vem cá meia horita, ajuda-me, não estou a dar conta.” E ela?!

Dona Margarida fez uma pausa — teatral, carregada de drama. Tiago imaginou-a na cozinha, com o seu avental de festa, o telemóvel numa mão e a faca de cozinha na outra. Na sala, como plateia, as amigas de sempre — testemunhas e juízas daquele drama familiar.

— Ela disse que estava ocupada! — cuspiu a mãe. — “Podia ter avisado com antecedência”, disse! Isto é normal? Que tom é este? Estás a imaginar? Ela humilha-me, a mim, tua mãe, como se fosse uma criança, à frente das minhas convidadas! Elas a olhar, e ela a dar-me lições sobre planeamento!

Tiago esfregou a ponte do nariz. Conhecia aquela história de trás para a frente. Para a mãe, qualquer desvio do plano era uma catástrofe, e a culpa caía sempre sobre alguém. Ele sabia: Carolina estava mesmo ocupada. O trabalho dela em casa exigia mais esforço do que a sua rotina no escritório. Mas, para a mãe, só existia um horário — o dela.

— Mãe, conta-me tudo com calma. O que é que ela te disse, exatamente?

— Com calma?! — a voz dela ganhou um tom metálico de mágoa. — Ela disse: “Dona Margarida, agora não posso, estou numa reunião online. Assim que acabar, daqui a umas horas, vou aí.” Pronto! Ela põe o trabalho à frente de um pedido meu! Eu aqui a matar-me, e ela enfiada no computador! Tens de trazê-la já para cá. Que peça desculpas. À frente de toda a gente.

Soou como uma sentença. Não um pedido, mas uma ordem. Tiago imaginou-se a largar o trabalho, a correr para casa, buscar a mulher e levá-la até à mãe, onde ela teria de se humilhar perante Adelaide e Dona Lúcia. A ideia era tão absurda que quase lhe escapou um riso.

— Estou a trabalhar, mãe. Não posso ir agora. Falamos à noite.

— À noite?! Não entendes?! O desrespeito aconteceu agora! Elas estão lá a pensar que tipo de mulher arranjaste — uma mal-educada que despreza a sogra! Resolve isto já! Liga-lhe! Manda-a vir! És homem ou quê?

Ele sentiu-se outra vez encurralado no jogo dela. Ela não queria solução. Queria demonstração de poder — que o filho obedecesse e que a nora reconhecesse quem mandava.

— Tratamos disto à noite — repetiu, firme, terminando a chamada. — Tenho trabalho.

Pousou o telemóvel com o ecrã virado para baixo. O colega fingia não ter ouvido, mas Tiago sentia o seu olhar — tão incómodo quanto a vergonha que o telefonema deixara. Os números no ecrã desfocavam-se à sua frente. A noite prometia ser longa.

Em casa, o cheiro era a café e ar fresco. Nada do aroma de refogado ou do vapor das panelas — ali era diferente. Limpo, organizado, sem exageros. Carolina estava à secretária na sala, concentrada no ecrã. Só ao fim de uns segundos o viu entrar.

Tiago foi à cozinha, encheu um copo de água e bebeu de um trago. O frio aliviou um pouco o calor interno. Quando Carolina tirou os auscultadores e se virou, o rosto dela não mostrava culpa. Apenas cansaço e tranquilidade.

— Olá. Como foi o dia?

— A mãe ligou.

— Desconfiei. Ela desligou-me quando disse que estava ocupada.

— Quer que peças desculpas. Às amigas dela.

Carolina fechou o portátil com cuidado. Falou devagar, sem emoção:

— Tinha uma reunião com clientes alemães. Estávamos a fechar detalhes de um projeto de três meses. Disse-lhe: “Dona Margarida, não posso agora, mas assim que acabar vou aí ajudar.” E ela desligou. Foi tudo.

As palavras dela eram precisas como dados num relatório. E nessa calma, havia uma verdade inabalável. De repente, Tiago viu duas realidades: a histeria da mãe por causa de uns petiscos, e o profissionalismo de Carolina, que sustentava o futuro deles. A escolha que lhe impunham desde criança tornou-se ridícula.

— Percebo — disse, curto. Pegou no telemóvel e marcou o número. — Vem cá.

Carolina aproximou-se. Ele ativou o altifalante, e quase de imediato a voz tensa da mãe ecoou:

— Então?! Vêm cá?

— Mãe, já percebi o que se passou — respondeu ele, frio. — A Carolina estava a trabalhar. Não podia largar tudo só porque decidiste convidar gente. Ela não é criada. É minha mulher.

Do outro lado, silêncio. Depois, um suspiro indignado.

— Como é que…

— Não acabei. Nunca mais falas com ela desse jeito. Muito menos a ameaças. Se ouvir outra vez, não nos vemos mais. Nunca. Entendeste?

O silêncio tornou-se espesso, quase doloroso. Como se alguém lhe tivesse arrancado o chão. Tiago desligou primeiro. Olhou para Carolina. No olhar dela, não havia triunfo. Havia compreensão. Sabiam que era só o começo. A primeira vitória numa guerra que a mãe já começara.

Passaram-se duas semanas. Duas semanas de silêncio pesado. A mãe não ligou. Aquele vazio assustava mais do que os gritos. Tiago sabia: ela não desistira. Estava só a preparar o próximo ataque.

E ele veio.

O telemóvel acordou-o num sábado de manhã. A voz da mãe soava estranha — doce demais, suave demais:

— Meu filho, olá. Pensei… o meu aniversário está a chegar. Não é uma data redonda, mas gostava de juntar a família. As tuas tias, as primas… Tu e a Carol vêm, não é? É muito importante para mim…

Tiago olhou pela janela para a paisagem urbana cinzenta. Cada palavra dela era um degrau numa escada que levava a uma armadilha. “Os mais próximos.” “Muito importante.” Não era um convite — era uma declaração de guerra, com as peças já todas no lugar.

— Vamos — disse, sabendo que recusar seria uma vitória para ela, que usaria como prova diante de toda a família.

No dia do aniversário, entraram no apartamento da mãe. O ar estava pesado com perfume, carne assada e o cheiro do chão encerado. A sala já estava cheia: as irmãs de Dona Margarida — Zélia e Noémia, quase idênticas, como cópias desbotadas uma da outra;Ela apertou a mão dele com força, e eles saíram pela porta, deixando para trás o silêncio pesado e o peso de uma história que, finalmente, não os definiria mais.

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