Vou ensinar sua mulher a falar direito, garoto

— Se a tua mulher não aprender a falar direito comigo, eu arranco-lhe todos os cabelos, filho!

A voz ao telefone vibrava de raiva mal disfarçada — tão cortante e furiosa que abafava o zumbido monótono do escritório. Miguel pressionou o telemóvel contra o ouvido e virou-se do colega, que lhe lançou um olhar curioso. No ecrã do computador, o relatório anual ficou suspenso — tabelas e gráficos que agora pareciam apenas linhas e números sem sentido. Toda a realidade estava na sua mão — quente, densa, cheia de agressão.

— Mãe, o que aconteceu? — perguntou, cansado e baixo.

— As minhas amigas vieram! A Dona Adelaide, a Aninhas! Mulheres decentes, não é qualquer uma! Estou a pôr a mesa, a cortar os aperitivos, o cozido está no forno. Liguei à Carolina, pedi educadamente: «Vem cá meia hora, ajuda-me, não consigo sozinha.» E ela?

Teresa fez uma pausa — teatral, cheia de drama. Miguel imaginou-a na cozinha, com o avental de festa, o telemóvel numa mão e uma faca na outra. Na sala, como plateia, as amigas — testemunhas e juízas desta tragédia doméstica.

— Ela disse que estava ocupada! — disparou a mãe. — Disse que eu devia ter avisado antes! Isto é normal? Que tom é esse? Imaginas? Ela humilha-me, a tua mãe, como se fosse uma criança, à frente das minhas convidadas! Elas ali a olhar, e ela a dar-me lições sobre planeamento!

Miguel esfregou a ponte do nariz. Conhecia esta história de cor. Para a mãe, qualquer desvio do plano era uma catástrofe, e a culpa era sempre de alguém. Ele sabia: Carolina estava mesmo ocupada. O trabalho dela em casa exigia mais esforço do que a sua rotina no escritório. Mas para a mãe, só existia um horário — o dela.

— Mãe, explica-me tudo devagar. O que é que ela te disse exatamente?

— Devagar? — a voz da mãe ganhou um tom metálico de mágoa. — Ela disse: «Dona Teresa, agora não posso, tenho uma reunião virtual. Quando acabar, daqui a umas horas, venho logo.» Assim! Ela põe o trabalho acima do que eu peço! Eu aqui a esfalfar-me, e ela ali ao computador! Tens de a trazer já. Que peça desculpas. À frente de todas.

Soou como uma sentença. Não um pedido, uma ordem. Miguel imaginou-se a largar o trabalho, a correr para casa, a levar a mulher para a mãe, onde ela teria de se humilhar perante a Aninhas e a Dona Adelaide. A ideia era tão absurda que quase riu.

— Estou a trabalhar, mãe. Não posso ir a lado nenhum. Falamos à noite.

— À noite?! Não percebes! A humilhação foi agora! Elas estão ali a comentar a nora que arranjaste — uma mal-educada que despreza a sogra! Resolve isto já! Liga-lhe! Obriga-a a vir! És homem ou não?

Ele sentiu-se de novo na armadilha dos jogos da mãe. Ela não queria uma solução. Queria uma demonstração de poder — que o filho obedecesse e a nora reconhecesse a sua autoridade.

— Tratamos disto à noite — repetiu, firme, terminando a chamada. — Tenho de trabalhar.

Pousou o telemóvel com o ecrã para baixo. O colega fingiu não ouvir, mas Miguel sentiu o seu olhar — tão incómodo como o constrangimento deixado pela chamada. Os números no ecrã desfocaram-se. A noite prometia ser longa.

Em casa, o cheiro a café e ar fresco recebeu-o. Nenhum odor de carne ou panela fumegante — ali era diferente. Limpo, organizado. Carolina estava à secretária na sala, concentrada no ecrã. Só ao fim de uns segundos o viu.

Miguel foi à cozinha, encheu um copo de água e bebeu de um trago. O frio aliviou o calor interno. Carolina tirou os auscultadores e olhou para ele. Nenhum sinal de culpa. Só cansaço e serenidade.

— Olá. Como foi o dia?

— A tua mãe ligou.

— Já sabia. Desligou-me quando disse que estava ocupada.

— Quer que peças desculpas. À frente das amigas dela.

Carolina fechou o portátil com cuidado. Falou pausadamente, sem emoção:

— Tinha uma reunião com clientes alemães. A fechar um projeto de três meses. Disse à Dona Teresa: «Agora não posso, estou numa reunião importante. Assim que acabar, venho.» Ela desligou. Foi tudo.

As palavras dela eram precisas, como dados num relatório. E naquela calma — a verdade pura. Miguel viu duas realidades: a histeria da mãe por causa de uns petiscos, e o profissionalismo de Carolina, que garantia o futuro deles. A escolha que lhe impuseram a vida toda tornou-se ridícula.

— Percebi — disse, seco. Pegou no telemóvel, ligou. — Vem cá.

Carolina aproximou-se. Ele ativou o altifalante, e a voz tensa da mãe surgiu:

— Então?! Vêm?

— Mãe, esclareci — respondeu, frio. — Carolina estava a trabalhar. Não podia largar tudo porque decidiste convidar gente. Ela não é criada. É a minha mulher.

Silêncio do outro lado. Depois, um suspiro indignado.

— Como é que…

— Ainda não acabei. Nunca mais lhe falas assim. Muito menos a ameaças. Se ouvir outra vez, não nos vemos mais. Nunca. Entendeste?

O silêncio na linha tornou-se denso, assustador. Como se alguém lhe tivesse arrancado o chão. Miguel desligou primeiro. Olhou para Carolina. No olhar dela, não havia triunfo. Havia compreensão. Era só o início. A primeira batalha numa guerra que a mãe já começara.

Passaram duas semanas. Duas semanas de silêncio pesado. A mãe não ligou. Aquele sossego assustava mais que gritos. Miguel sabia: ela não desistira. Estava a preparar o próximo ataque.

E veio.

O telemóvel acordou-o num sábado de manhã. A voz da mãe soava estranha — doce, suave:

— Filho, olá. Pensei… o meu aniversário está a chegar. Não é uma data redonda, mas quero juntar a família. As tuas tias, as primas. Tu e a Carolinha vêm? É tão importante para mim…

Miguel olhou para a paisagem cinzenta lá fora. Cada palavra da mãe soava como um degrau numa armadilha. “Os mais próximos.” “Muito importante.” Não era um convite — era uma declaração de guerra, com as peças já dispostas.

— Vamos — disse, sabendo que a recusa seria usada como prova da sua ingratidão.

No dia do aniversário, entraram no apartamento dela. O ar era denso com perfumes, carne assada e chão encerado. A sala estava cheia: as irmãs de Teresa — Zélia e Leonor, quase gémeas; as filhas delas, a Dona Adelaide — guardiã dos segredos familiares — e outros rostos do passado, ali reunidos como atores numa peça. Todos se viraram para os recém-chegados, com sorrisos forçados. Carolina entrou de cabeça erguida. O rosto tranquilo, sem medo. Sabia: seria um teste. Estava pronta.

A noite começou com conversas pegajosas. A tia Zélia, enchendo o prato de Carolina, susp— Come, Carolina, come — disse a tia Zélia, empurrando-lhe um pedaço de bolo — precisas de forças, as mulheres de hoje só pensam no trabalho, mas o que importa mesmo é a família, e o Miguelzinho sempre foi um filho dedicado.

— Pois foi — acrescentou a tia Leonor, trocando um olhar significativo com Teresa — ele sempre soube o seu lugar, ao lado da mãe, agora a juventude tem outras ideias, querem ser donas de si.

Carolina sorriu com educação e cortou um pedaço pequeno do bolo.

— Os tempos mudam, Dona Leonor — respondeu, calma — hoje em dia, sabe-se conciliar trabalho e família.

O comentário pairou no ar. Esperavam constrangimento, desculpas, mas encontraram apenas segurança. Por um instante, ficaram sem resposta, mas logo retomaram o ataque por outro flanco.

Teresa contava histórias. Histórias de como criara o filho sozinha, dos sacrifícios pela família, de como mantivera a casa sempre aberta. Cada história era cuidadosamente planeada e terminava com uma reprimenda velada a Carolina.

— …e foi aí que entendi — concluiu ela — que o alicerce da família é o respeito, respeito pelos mais velhos, pela sua experiência, pelas suas palavras, sem isso, a casa desmorona-se como um castelo de cartas.

Os convidados assentiam, mirando Carolina com olhares de censura. Ela era a estranha naquele mundo de tradições e cumplicidades. Miguel tentou aliviar a tensão, mas a sua voz perdeu-se no coro geral. Ali, não era filho nem sobrinho — era apenas o marido da mulher que não se encaixava.

O clímax chegou quando Teresa ergueu a taça.

— Quero brindar à família — anunciou, com um brilho triunfante no olhar — para que os mais novos ouçam os mais velhos, não ponham os seus afazeres acima do que é importante, desejo ao meu filho sabedoria, e à sua mulher… — fez uma pausa — que aprenda essa sabedoria, que entenda que a família não é um trabalho que se pode adiar.

Era o veredicto. Pronunciado em público, sem direito a apelo.

Miguel esperou que o brinde terminasse. Não discutiu. Apenas se levantou, pousou o guardanapo.

— Obrigado pela noite. Temos de ir.

Pegou na mão de Carolina e saíram sob olhares atónitos. Esperavam gritos, lágrimas, confronto. Mas a frieza de Miguel foi um golpe. Ele não jogava o jogo deles. Simplesmente saiu, deixando-os com uma vitória vazia e o amargo da derrota.

No carro, o silêncio era denso. Miguel não ligou o motor de imediato. Carolina olhava pela janela, para a escuridão. Não fez perguntas, não procurou conforto. A sua presença era apoio suficiente. Confiava nele. Totalmente.

— Tenho de voltar lá — disse ele, rompendo o silêncio.

— Sozinho?

— Sim. Isto tem de acabar de uma vez.

Não explicou. Ela já sabia. Ele deu a volta ao carro e estacionou à frente da mesma casa. Não pediu que esperasse. Apenas saiu, sentindo um frio espalhar-se-lhe no peito. As emoções ficaram para trás. Agora, só restava agir.

Tocou à porta. A tia Zélia abriu, o sorriso satisfeito extinguindo-se ao vê-lo. Ele passou por ela sem dizer nada, entrou na sala. O festim continuava, mas o ânimo já minguara. A mãe, no centro, recebia outro elogio da Dona Adelaide.

— …sempre foste uma mulher sábeia, Teresa, sabes onde está o mal.

Ao ver o filho, calou-se. O rosto dela mostrou surpresa, depois expectativa. Pensou que ele voltara para pedir perdão.

— Então? Mudaste de ideias? Vieste congratular a tua mãe como deve ser?

Miguel parou no meio da sala. Não se aproximou da mesa. Apenas olhou para todos — a mãe, as tias, as amigas. Um tribunal que já emitira o veredicto.

— Voltei para esclarecer uma coisa — a voz era clara, sem tremor — passaste a noite inteira a fingir que eu tenho de escolher entre ti e a minha mulher, encenaste isto para eu confirmar a tua decisão.

Fitou a mãe. O sorriso dela esvaiu-se.

— Tu já escolheste. À frente de todos. Agora é a minha vez.

Pausa. Todos imóveis.

— Este apartamento ficou para nós dois depois do pai. A minha metade é tudo o que me liga a esta casa. Amanhã, ponho-a à venda.

A sala gelou. O zumbido do frigorífico soou estridente. A tia Leonor abriu a boca, mas não disse nada. O rosto da mãe tornou-se uma máscara.

— O quê? — sussurrou. Não era pergunta, era choque.

— Pela planta, terás de vender o apartamento inteiro. Recebes a tua parte. Chega para um T1 nos arredores. Nós compramos uma casa. Noutra cidade.

Falava calmamente, sem raiva. Não era ameaça. Era consequência. Fria, lógica, inevitável. Olhou para ela uma última vez — para a mulher que tentara controlá-lo com culpas, gritos e pressão. Agora, ela estava cercada de aliados, mas completamente só. O seu poder desmoronara. E ela mesma lhe dera a ferramenta para o destruir.

— É tudo, mãe. Escolho a minha família.

Virou-se e saiu. Ninguém o impediu. Ninguém gritou. Apenas o clique da porta atrás dele. Desta vez, para sempre.

Leave a Comment